Cinza

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Hoje o mundo acordou cinza. Na minha cabeça, pelo menos. Mesmo o céu azul não me engana. Ao longe, nuvens pesadas. Chuva, na certa.
O azul vai sumir, no final das contas. Vou adiantar o processo e apagar essa cor tão brilhante. Cortina fechada. Se não vejo,  é porque não existe.
Não que seja agradável ficar olhando pra esta cortina. Pedaço de pano feio, velho. O verde-musgo que tinha achado elegante quando comprei agora é só deprimente.
Vou comer alguma coisa. O mundo acinzentado deve ser fome apenas. Ledo engano. O café de todo dia está opaco e, ainda, por cima, doce demais. Como odeio açúcar. Me dê um pouco de amargor, por favor.
O pão que comprei ontem já está bolorento. Manchas cinzas. Chumbo no estômago.
Um pouco de cor, por favor. Mas hoje não. Hoje não tem cor. Acabou o circo, acabou a pipoca. No lugar da lona em que a alegria dava o tom levantaram um arranha-céu. Cinza.
A brincadeira deu lugar ao trabalho. À necessidade de se tornar alguém bem-sucedido. Seja lá o que isso quer dizer.
Falando nisso, meu serviço não pode esperar. A melancolia me atrasou. Vou empurrar esse café doce, vestir meu uniforme cinza e seguir meu caminho.
O asfalto rachado, a fumaça dos ônibus, as placas de metal que insistem em tornar o caminho até o trabalho mais árduo decretam: o mundo ficou cinza. Aceite.
Nem minhas lágrimas são puras. Impregnadas com o rímel barato, que não é resistente à água, saem abundantes, cinzas.
Se o processo é irreversível, minha alma também deve estar ficando dessa cor horrenda.
Dito e feito. Olho  para a palma da mão enquanto sacolejo no ônibus. Suja. Se estou cinza por fora, também devo estar por dentro.
Desço desanimada do ônibus, preparada para morrer mais um pouquinho em um novo dia de trabalho. Está chovendo ainda por cima. As nuvens tardam, mas não falham.
Olho para baixo, direto para o asfalto, tentando evitar que o resto do rímel vá embora. Por isso, nem vejo você chegar com seu guarda-chuva. Grande, amarelo.  Iluminado como seu sorriso.
Não sei o que você vê na minha alma cinza.  Se consegue olhar além dela.
Isso não importa. Você me dá o braço e me puxa para debaixo do seu guarda-chuva.
Cinza e amarelo se tornam um só.
E sou feliz.

Quem é ela?

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Sombra. Foi a primeira palavra que veio à cabeça de Carolina quando olhou aquela mulher. Ela parecia uma sombra do que havia sido. O cabelo era bonito, tinha um bom corte. As roupas faziam sentido. Eram básicas: calça jeans, blusa branca e um sapato vermelho, que dava um toque de estilo à coisa toda.

Apesar de bonitas, via-se que as roupas não vestiam tão bem aquele corpo. Carol teve a impressão que aquelas peças cairiam muito melhor em alguém mais magra como, provavelmente, aquela mulher já havia sido. Olhando, ela conseguia sentir o desconforto da estranha.

Ela não fazia parte do cenário, mesmo parecendo estar em um ambiente familiar, cercada de amigos de longa data. Todos eles se abraçavam muito e mostravam para quem quisesse ver que se sentiam realmente felizes por estarem juntos. Uma das frases mais repetidas na mesa era “Nossa, você não mudou nada. Continua igual!”. As frases, provavelmente, eram ditas de coração.

Mas Carol sentia, olhando aquela moça, que nada continuava igual pra ela.

Percebia-se que ela estava feliz por estar ali. Mas alguns pequenos gestos entregavam que algo estava errado. Muitas vezes ela se desconectava das conversas e parecia vagar por um outro lugar.

As roupas não pareciam confortáveis:ela puxava a blusa toda hora, como se a peça fosse de um tamanho menor e não coubesse naquele corpo. O rosto, inchado, cansado, conservava um pouco da beleza e do frescor. Mas parecia escondido por uma grossa camada de rotina. Carolina sentia isso.

Ela tinha vontade de dar um passo e abraçar aquela estranha. Dizer que ia ficar tudo bem. Que aquele corpo roliço, que parecia deixá-la desconfortável, era só uma casca. A essência era mesma.

Certamente, a moça era uma pessoa ainda melhor do que tinha sido há 20 anos, quando convivia com as pessoas daquela mesa. Ela devia ter dado seus tropeços, se reerguido e começado de novo. Se reinventar deixa marcas. O tempo, também. A barriga proeminente, a pele flácida, o rosto redondo. Tudo tem uma história. O corpo é só um casulo. Só isso.

Carolina sabia. Por isso, queria dizer que entendia melhor do que ninguém o que era estar em um corpo que não parece ser seu. Foi difícil pra Carol sair do seu próprio casulo e dar aquele passo, mas ela quis. Ela queria tocar aquele rosto redondo e dizer que tudo ficaria bem.

E assim ela fez. Seguiu em frente, olhou para a moça sem medo e esticou a mão. Ao encostar na bochecha da estranha, foi esquisito. Sentiu uma superfície fria, implacável, que apenas reflete, sem filtro.

Recolheu as mãos e fez a única coisa que podia fazer naquele momento: fechou os olhos e, vencendo o medo, encostou seu corpo inteiro naquele espelho. Ela e a sombra eram apenas uma, afinal.

Daisy

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Finalmente ela foi embora. Já não era sem tempo. A presença dela na casa me sufocava. Minha vida já está uma bosta: sem emprego, desenhando cada vez pior, vendo minhas economias minguarem a cada dia. Sou um ilustrador de merda e ela faz questão de deixar isso claro.

O olhar de desdém, as tiradas irônicas e a impaciência no trato. Tudo isso dói. Mas o pior foi outra coisa: ver sumir a admiração no olhar dela. No dia que a Daisy deixou de acreditar em mim, eu também deixei.

Não quero ficar aqui me lamentando. Agora estou livre! Vou fechar essa droga de computador e, finalmente, curtir a vida. Agora posso ser tudo o que sempre quis.

Só preciso arrumar umas coisas antes. A bagunça que ela deixou para trás, por exemplo. Nem na hora de ir embora aquela garota consegue manter as coisas em ordem. Parece que faz de propósito. Acha que assim não vou esquecê-la. Idiota.

O All Star rosa que ela usou no nosso primeiro encontro: direto para o lixo. A bolsa de miçangas que minha mãe deu para ela no último Natal: lixo também. O livro esquecido debaixo da cama: direto para a lixeira! Opa. Não. Pera.

Não acredito que ela não levou “O Grande Gatsby”. É o livro preferido dela.

Daisy não deixou o livro sem querer. Foi de propósito, claro. Ela vai voltar.

Minha nova vida pode esperar um pouco. Vou só reler aquela parte que gosto…

“So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.”

Claro que ela vai voltar.

À procura

2015-12-06 00.58.40Saí com passos incertos naquela manhã. As pernas tremiam, os braços não encontravam seu lugar e até a cabeça fazia um movimento estranho. Quem me via, certamente achava que eu tinha um problema motor. Fisicamente, pura esquisitice. Racionalmente, pura certeza. Saí certa e decidida sobre o que queria.

Dar. Não queria amor, carinho, demonstrações de afeto. Queria só dar.

Não aguentava mais aquela situação. Tinha 20 anos, pelo amor de Deus. Em pleno século 21, como alguém com essa idade ainda é virgem? Eu tinha algum problema, com certeza. E estava determinada a resolver essa questão.

Sei que não sou uma pessoa feia. Ok, nunca fui uma beldade. Cabelo fino, preto, sem graça, corpo relativamente desproporcional, peitos de personagem de anime e zero bunda. Ainda assim, atrair o sexo oposto nunca foi problema. Mas lá estava eu. Vinte anos e completamente virgem.

Aquilo tinha que acabar. Dar, dar, dar. Pensamento fixo.

Sorte minha, imaginei, que comecei o projeto “Ou dá ou dá” em um sábado de carnaval.

Tolinha.

Queria ter colocado uma fantasia virginal para combinar com meu hímen não rompido. Infelizmente, a cor branca não me favorece. Não encontrei no armário nenhum vestido rendado fofo cor de algodão para ostentar o meu tesouro para os foliões de plantão (Tesouro… Pausa para risos. Aquilo era um fardo, isso sim!).

Na falta da fantasia “Virgem perfeita”, me virei com o que tinha em casa mesmo. Por preguiça e falta de planejamento me vi saindo portaria afora com o que, para mim, era o kit de dormir de Holly Golightly em “Bonequinha de Luxo”: máscara de dormir azul, gato amarelo de pelúcia e brincos franjados em rosa-choque.

Os passantes de Copacabana certamente não eram fãs de Audrey Hepburn. Eu era apenas uma pessoa que tinha fumado/bebido/injetado muito e tinha saído na rua assim mesmo. A sorte é que era carnaval e ninguém ligava.

Ignorei a falta de conhecimento daquela gente. Eu era alguém com uma meta. Aquele maldito pedaço de carne tinha que partir. Era ele ou eu. Já imaginava a mulher glamourosa e incrível que seria quando tivesse me livrado daquele problema.  

Quando estou focada, tenho o hábito de agir sozinha. Ignorei as ligações, mensagens de amigos convidando para bloquinhos e parti na missão. Era ousada e independente, afinal.

Na teoria, tudo certo. Na prática, me senti meio deslocada no meio de grupos enormes de pessoas. Todos pareciam se conhecer e eu estava lá, sozinha, com meu hímen radioativo.

Foco na missão”, pensava. Não sou de beber, mas precisava de um impulso. Cheguei no ambulante  e perguntei o que ele tinha para dar coragem. Sem titubear: “Jurupinga”. Cara de dúvida e ele completa: “Juro pinga, mas não juro amor”. Opa, perfeito! Passa pra cá.

Ainda tonta da pinga sem amor, senti um braço encostando no meu. Dã, era um bloco. Profusão de braços suados se encostando o tempo todo. Mas aquele. Ah, aquele braço. Bronzeado, pelos loirinhos, firme sem ser duro, sabe? Aquele braço ia me ajudar na missão “Jane not the Virgin”. Fiz a única coisa que podia fazer no momento. Segurei o braço do Thor de forma bizarra, olhei para ele com um olhar suplicante (que, hoje sei, deve ter parecido um olhar psicopata) e disse: “Bebi Jurupinga. Me ajuda?”.

Acho que aquilo devia ser uma espécie de senha, porque ele nem hesitou. “Vou te dar uma água.”. Três garrafas depois, devidamente hidratada, sentadinhos no chafariz da Praça XV, consegui olhar a fantasia dele. Viking.

Pera, não me expressei direito: ele era “O” viking. Ragnar Lothbrok ia se roer de inveja.

Como vocês devem se lembrar, eu era uma moça em uma missão.  “Vamos sair daqui?”. O homem nórdico ficou confuso. Quem? Onde? Como? Pra que? Eu não queria perder tempo. “Quero conhecer sua porção Thor na cama”. Ok, foi ruim, bem ruim. Infantil, quase, admito. Mas queria acabar logo com aquilo. A visão dele nu não me enojava. isso era um começo.

Não tive sucesso. Meu Ragnar rapidamente se transformou em um lorde inglês cheio de desculpas. “Meus amigos, meus compromissos, não posso largar meu machado…Vamos conversar primeiro?”.

Sem tempo para lamentação. Missão dada é missão cumprida. Agradeci e parti para a próxima. Cambaleante (de quem foi a ideia da Jurupinga?), mas sempre em frente e com dignidade. Nada iria me segurar.

Sorte que o centro do Rio de Janeiro é quase uma cidade de interior. Com alguns passos vacilantes, estava na Lapa. Deixo os países nórdicos para entrar em um mundo eclético. Com curupiras, jogadores de futebol (alguém não teve tempo de arrumar fantasia também) e muitas, muitas sereias.

Sempre fui tradicional (hímen intacto com 20 anos, certo?), não foi surpresa me encantar pelo primeiro pierrô na rua. A fantasia dele estava bem caidinha, na verdade. Sapatos vermelhos não combinam com essa roupa, alô! Mas… O olhar dele me encantou. Olhos pretos, caídos, tristes. Me levaram a pensar que era um cara romântico, que me entenderia e faria minha primeira vez especial (hahahahahahahahahaha. Desculpa, não devia me adiantar, mas #sqn).

Ok, estraguei a surpresa, mas o pierrô de pierrô não tinha nada. O olhar triste era lascivo, o amor pela colombina era, bem, amor pelo pau dele. Isso não seria ruim,especialmente na minha missão. Só que ele, veja bem, não queria trepar (fazer amor não se encaixa aqui, vocês entendem, né?). Ele queria só comer alguém. Ou, palavras dele, ser chupado. Bom, passei essa aí. Sem arrependimentos.

Cara, dar no carnaval não devia ser tão difícil, né? Mas foi. Cabisbaixa, com a máscara de dormir azul já emporcalhada e o gato amarelo perdido, segui adiante.

Da Lapa para o CCBB, um pulo. Se o bloco não era meu caminho, a sala de projeção havia de ser.  Um oásis no meio daquela horda de corpos suados. Entrei na livraria para tomar fôlego e continuar minha missão (aquele hímen tinha que ir embora!).

Na dúvida entre um livro do Ian McEwan e outro da Jennifer Egan, me distraí e tropecei em um anjo (a fantasia era de anjo, a cara era de anjo e o jeito era de anjo, então me permito descrever dessa forma, ok?). O nome dela era Ruth, o que eu gostei. Sempre curti nomes, hã, vintages.

Assim como eu, Ruth buscou abrigo no CCBB. A identificação foi imediata. Em 10 minutos estávamos sentadas na frente da cafeteria trocando impressões, frustrações e desejos como  se fôssemos velhas amigas.

Como boa recruta, olhei pra ela e pensei se eu não estava procurando no lugar errado. Seria tão mais fácil tentar me relacionar com uma pessoa como esse anjo, que me vê e me entende (ou tenta me entender), que está na minha pele e, dia após dia,  sente a pressões que eu sinto.

Estava divagando quando ela pegou minha mão, de uma forma carinhosa. Olhei para ela e achei, por um segundo, que minha missão estaria cumprida. Não durou muito. Não era aquilo. Dei um abraço, troquei contatos e soube que Ruth seria minha amiga. Para sempre ou, na pior das hipóteses, por um longo tempo.

Desanimada, desisti do filme e fui embora. Estava dando minha missão como encerrada, ciente do meu fracasso (meu hímen ainda latejava, o maldito) quando parei e tive uma surpresa. Olhei para o lado e tinha uma vitrine. No reflexo, os meus traços. Mas o olhar era diferente, Confiante, combinando com a roupa: tubinho preto, colar de pérolas. Nada poderia segurar aquela mulher. E aquela mulher, ah, ela era eu. E o hímen, ah, ele era só um pedaço de carne, no final das contas.

No dia seguinte, fui de Mulher Maravilha.

(E reencontrei aquele viking)

Oito de Copas

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Ela tinha que deixar tudo aquilo para trás. Ela sabia. Naquela época, ela era Nina. Não Carolina. Ela não tinha paciência, hoje ela tem. Era egoísta (isso, na verdade, ela ainda é). De qualquer forma, ela evoluiu. Pronto. Fim de papo.

Droga. Por que teve a brilhante ideia de fazer uma busca nos e-mails antigos? Por que achou aquela conversa e decidiu ler? Não era nada demais. Uma conversa como tantas outras que eles tinham durante o dia. “Comprou café? Tem pilha em casa? Amanhã viajo cedo…”. Palavras simples, mas que perfuraram seu coração como uma espada. Nelas, amor e carinho transbordando de um lado e o tédio e desinteresse aparecendo do outro. Do seu lado.

Deixa disso, Carolina. Nina não existe mais. Fecha a janela do e-mail, limpa as lágrimas, mergulhe de cabeça neste oceano que é o seu interior e abra espaço para a Carol nascer em você.

A Imperatriz

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Alice não se lembrava da última mês que tinha tido contato com a terra. Seus pés, sempre cobertos, conheciam melhor o asfalto ou, melhor, o carpete felpudo do apartamento de três quartos que dividia com a filha e com o marido.

Quando Carolina, do alto dos seus três anos, chegou da escola com uma singela mudinha em um vaso de plástico e pediu a ajuda da mãe para regar a planta, Alice travou. Não sabia como fazer aquilo. Quanta água era necessária? Meio copo seria suficiente? Não ficou em dúvida por muito tempo. Foi direto para o Google: muda+quantidade+água. Com a resposta em mãos, foi cumprir seu dever de mãe e ajudar a pequena.

Trabalho concluído, Carolina já desinteressada, correndo para pegar seu tablet e, sabe-se lá porque cargas d’água, Alice ficou em pé, olhando fixamente para a mudinha que, ela jura, parecia realmente feliz depois do seu banho.Em um impulso incontrolável, tinha que tocar na areia úmida. Mexeu na terra por um tempo, como se estivesse descobrindo um brinquedo novo e sentindo sensações que não conhecia. Fechou os olhos e não resistiu à necessidade de sentir aquele cheiro, levá-lo para dentro de si. De repente, como quem desperta de um sonho, se deu conta da situação: parada na frente da pia da cozinha, com terra espalhada pelos dedos (e, ela tinha certeza, até mesmo no nariz), parecendo maluca. Limpou-se rapidamente e foi cuidar da vida, como adultos têm que fazer.

A mudança, no entanto, já tinha acontecido. Ela e aquela mudinha tão pequena tinham estabelecido uma conexão. Como se aquele vegetal que estava nascendo tivesse doado para Alice, tão cansada de tudo, um pouco da sua vontade de viver e crescer rumo às nuvens.

Alice não mudou radicalmente depois daquela experiência. Não largou tudo e foi viver no campo, não se separou do seu marido em busca de liberdade, nem mesmo deixou de comer os pratos industrializados que gostava. Mas algo dentro dela se libertou. Passou a reparar no seu corpo, a sentir seus batimentos cardíacos, a aproveitar a luz do sol que batia no seu rosto. E substituiu o carpete felpudo do apartamento por tábuas de madeira, por onde adorava andar descalça com Carolina, como se fossem fadas, com guirlandas de flores nos cabelos.